A dialética da inovação
FREIRE, Ricardo Ruiz; COSTA, Emmanuel de Oliveira.
RESUMO: Este artigo discute os conceitos de inovação, inovação social e inovação tecnológica com o intuito de analisar a dicotomia existente entre esses termos em suas epistemologias e práticas. Após um longo período em que inovação esteve relacionada a um processo social, a partir da segunda metade do século XX o termo passa a definir processos relacionados somente ao desenvolvimento tecnológico e econômico. Recentemente, inovação social volta a ser discutida, embora muitas vezes adquira sentido restritivo às ações de combate à exclusão social e ao desgaste ambiental promovidos pela inovação tecnológica. Este estudo ressalta a importância desses conceitos caminharem juntos para a definição de políticas e estratégias para a inovação com foco na sustentabilidade do planeta. Para a melhor compreensão dos termos, uma análise bibliográfica e um estudo do caso da impressão 3D mostra como processos de inovação se relacionam tecno-socialmente, tanto em conceitos quanto em ações. O estudo apresenta uma matriz analítica que permite, por um lado, sistematizar e comparar esses conceitos e por outro, verificar como inovações sócio-técnicas promovem a sustentabilidade na esfera ambiental, social e econômica, e serve como subsídio para a construção de políticas para o setor. Ao final, percebe-se necessário estudos que consigam determinar e mensurar processos organizacionais de práticas sustentáveis nas esferas sociais e tecnológicas concomitantemente.
Palavras-chave: Inovação. Inovação Social. Inovação tecnológica. Sustentabilidade.
1 SOBRE A PESQUISA
Através de análise bibliográfica com pesquisa documental de fontes primárias, como publicações parlamentares e administrativas, relatórios industriais e registro de patentes, bem como de fontes secundárias, prioritariamente relatórios de pesquisa, artigos em revistas científicas e livros, esse artigo tem como pretensão entender como inovação social, em paralelo com inovação tecnológica, promove práticas sustentáveis, que visam diminuir ou estabilizar a pegada humana no ambiente bem como a equidade social e o desenvolvimento econômico. Espera-se tanto colaborar nos esforços para a conceituação dos termos como apontar caminhos para políticas no setor.
Por vezes, inovação social é apresentada como um conceito criado em contraste com a inovação tecnológica e seus efeitos indesejáveis (DOWBOR, 2007; ANDRÉ e ABREU, 2006), e sugere que o conceito de inovação social tenha surgido depois do conceito de inovação tecnológica. Porém, inovação social remonta ao início do século XIX (GODIN, 2016; SARGANT, 1858), momento histórico em que a inovação tecnológica não existia nos discursos. A inovação tecnológica é um termo atribuído às teorias dos ciclos econômicos de Schumpeter (LEITE, 2015; LACERDA e FERRARINI, 2013), muito embora na versão alemã de seu livro o autor se utiliza do termo Kombinationen — combinações (SCHUMPETER, 1911, pg. 160, 161 e 458) — e apenas na versão inglesa de 1939 o termo é grafado como inovação (GODIN, 2016).
A dialética presente na existência conceitual dos termos social e tecnológica da inovação é o método de abordagem (LAKATOS; MARCONNI, 2010) do presente trabalho. Na inquietante necessidade de buscar fundamentos na defesa do que seja social ou tecnológica, o fenômeno da inovação mostra-se como uno. Através da técnica da pesquisa bibliográfica se erigiu informar que não possuem naturezas distintas ou mesmo antagônicas e são consubstanciadas, independente da aplicação ou área do conhecimento, em engenhosidade para o novo, desafio para o aprimoramento e construção de valor à sociedade humana. Para além, inovação, de acordo com a origem do termo, permeia transformações sociais e tecnológicas em simbiose, portanto, auferem significantes mútuos, e caracteriza um só fenômeno. Para reatar esses laços entre os conceitos, busca-se compreender, durante o estudo etimológico do termo, em que momento inovação se distingue entre social e tecnológica e a partir de quando esse conceito se transforma em um desejo social (quase) uníssono.
O desenvolvimento deste trabalho contém três seções principais. A primeira, com foco na exploração do tema inovação, usa do método histórico para emergir os conceitos de inovação ao longo da evolução social e avanços na tecnologia linguística, procedimental e perceptiva da realidade humana. Para além de compreender sua etimologia e significados através do tempo, permeia a compreensão de porque um conceito tão contestado tornou-se um (quase) desejo majoritário de pessoas, empresas e nações, e como a dicotomia entre seus adjetivos sociais e tecnológicos contribuíram nessa mutação do termo. Na segunda parte, busca-se compreender a inovação no campo do desenvolvimento sustentável. Na terceira parte pretende analisa, também através de pesquisa bibliográfica, a questão da impressão aditiva tridimensional, ou impressão 3D, uma inovação tida como tecnológica que tem como inegável consequência alterações nos processos comportamentais da sociedade em relação ao ambiente — mesmo que as expectativas depositadas sobre esse processo sejam consideradas otimistas do ponto de vista da qualidade industrial de seus subprodutos (ROCA et. al., 2017). Em conclusão, mostra que a inovação, tecnológica e social, é um fenômeno que indica um conjunto de processos submetidos à lei da dialética materialista: tudo se relaciona em ações recíprocas (LAKATOS; MARCONNI, 2010).
O que pretende-se responder com este estudo é qual o porquê destes termos terem sido mantidos separados e antagônicos e quais os maiores interessados nessa separação?
2 Inovação ou morte
São crescentes na literatura os estudos sobre inovação social — embora parcos se comparados com a literatura sobre inovação, como mostra a figura 1. Porém, é comum uma equívoca compreensão do termo (GODIN, 2015), que acarreta em sua vulgarização e que “pode em breve cessar de ser [um termo] corrente, esvaziado de todo significado pelo constante uso excessivo” (POCKOCK, 1973, p.3). Não obstante a utilização dos termos na esfera teórica, extravasa-se a maneabilidade conceitual para a esfera prática. Uma vez a teoria em consonância com a prática, a hipótese aqui apresentada é a de que inovação social e inovação tecnológica caminham em uníssono na construção de estratégias para o exercício do desenvolvimento local sustentável (BELISÁRIO et. al., 2016).
Figura 1: Uso das expressões inovação e inovação social na literatura 1800–2008. Fonte: Google Books Ngram Viewer
No intuito de compreender amplamente o que é inovação e contribuir para discursos, teorias e políticas mais lúcidas, Godin (2015) desenvolve uma pesquisa que atinge o étimo do termo, e apresenta os conceitos existentes sobre inovação: mudança, novidade, originalidade, invenção, criatividade etc., bem como o significado desses conceitos, os discursos realizados em nome da inovação, os valores envolvidos nos debates, as teorias e os quadros conceituais desenvolvidos para explicar inovação. Ademais, apresenta os contextos históricos e literários das alternâncias de significantes e significados. Seu objetivo é a mensuração da inovação (GODIN, 2015). Segundo o autor:
“O conceito de inovação é de origem grega (kainotomia; καινοτομία), a partir do século V aC. A palavra deriva de kainos (novo). Inicialmente, a kainotomia não tinha nada a ver com nosso significado atual ou dominante de inovação como invenção técnica comercializada. Inovação significava “corte fresco”. Ele foi usado no contexto do pensamento concreto (“abrir novas minas”), bem como o pensamento abstrato (“fazer novo”). A inovação adquiriu seu significado atual como um uso metafórico dessa palavra. Nas mãos de antigos filósofos e escritores sobre constituições políticas, a inovação é “introduzir a mudança na ordem estabelecida”. (GODIN, 2015, p.36)
A primeira discussão integral de inovação foi de Xenófanes de Cólofon (430–355 aC), um filósofo e historiador (além de hábil cavaleiro, autor de “A arte da equitação”, uma das bases da literatura equestre). Ele descreveu um projeto de parceria público-privada (PPP) constituído de incentivos financeiros aos proprietários de escravos privados excedentes. Seu objetivo era resolver a questão de escassez de mão-de-obra nas minas de prata estatais de Laurion. A consequência seria o aumento das receitas e atividades econômicas do Estado grego, falido na era pós-guerra. Na época, a população de Atenas era composta por três estratos sociais majoritários: 100.000 cidadãos nacionais nativos; 30.000 residentes estrangeiros e 90.000 escravos (Amemiya 2004: 59). Xenófanes sugeriu que os novos imigrantes envolvidos na mineração de prata que se estabeleceram como residentes estrangeiros poderiam receber um tratamento igual ao dispensado aos nativos atenienses, uma idéia nova na época (Xenófanes 1897). E chegou a sugerir uma sociedade anônima, onde os particulares combinariam seus recursos nas operações de negócios para “compartilhar fortunas e minimizar riscos”. Seu livro, Ways and Means, a Pamphlet on Revenues, onde essas propostas foram documentadas, foi publicado pela primeira vez em 354 aC (DUPONT, 2017).
Xenófanes interpretou a inovação ou καινοτομία como a “abertura de novos cortes”: novas fontes de renda, uso eficiente do trabalho, uma força de trabalho melhor treinada e próspera, com uma valorização dos preços da terra (XENÓFANES, 1897, pg. 75). O sentido do termo é o de criar novas formas de fazer as coisas para alcançar um objetivo específico. Por outro lado, no entanto, Xenófanes considerou sua própria proposta arriscada, capaz de afetar o equilíbrio dos poderes políticos existentes (XENÓFANES, 1897, pg. 85; GODIN e LUCIER, 2012).
Nos gregos posteriores Platão e Aristóteles, inovação é usada num sentido essencialmente pejorativo. Platão expõe seu ponto de vista sobre a inovação em suas Leis, ao se referir sobre os crimes e as punições aos imigrantes: “(…) mas se ele for condenado por tentar fazer inovações na educação e nas Leis, deixe-o morrer” (PLATÃO, 2013). Para Aristóteles, que considerava a política como uma technê e não uma prática, a inovação também deveria ser rechaçada. Conforme afirma Thanassis (2015), “embora cada excurso em Política II tenha o seu próprio foco, (ambos) estão unidos pelo problema das inovações e das mudanças políticas”.
Ainda segundo Godin (2011), a ideia de inovação com esta conotação proibitiva se tornou comum entre os escritores romanos. Sêneca e Lucretia discutem a inovação — innovatione — e ambos demonstram como e por quê é temida em toda parte. Poetas como Horácio e Virgílio, moralistas (Juvenal, Sêneca, Cícero, Tácito) e historiadores (Sallust) desenvolveram o pensamento sobre a inovação — in nova — como algo maligno e proibido. Cicero, em sua obra De Imperio CN, afirma: “Eu sei o exemplo do que não deve ser feito contra a tradição e costume da maioria — ne quid novi fiat contra exempla atque institute moiorum. (Ciceronis, 1899) As opiniões desses escritores tiveram grande influência no pensamento político ocidental. Nos séculos seguintes, revolução e renovação seriam os dois pólos que conduziram o termo inovação entre um significante negativo e positivo ao mesmo tempo.
Isso se altera em 1547, com a proclamação contra aqueles que inovam, do Rei Eduardo VI:
A proclamation against those that doeth innouate, alter or leaue doune any rite or ceremonie in the Church, of their priuate aucthoritie: and against them which preacheth without licence, set furth the .vj. daie of Februarij, in the seconde yere of the Kynges Maiesties most gracious reigne
Neste período, principalmente devido à força da igreja Cristã, inovação teve um sentido muito negativo. Inovação foi sinônimo de heresia (GODIN, 2016, p. 159): uma mudança intencional, sempre para o mal.
Somente no século XVIII, e através da burguesia francesa, o conceito de revolução e de inovação começou a ser usado de forma positiva, e o espírito de inovação, pejorativa expressão de outros séculos, se tornou motivo de orgulho:
Whatever is now establishment was once innovation … The idea of novelty was the only idea originally attached to the term innovation, and the only one which is directly expressed in the etymology (Bentham, 1824, p.143–44 apud. GODIN, 2016, p.216).
Foi graças a esse espírito de inovação que, em 1858, um economista político de Birmingham — que advocava para a promoção de aulas de religião na educação elementar — cunhou o termo inovadores sociais (SARGANT, 1858). Em um eloquente livro pela defesa do capitalismo, William Lucas Sargant aponta os planos, em especial dos socialistas franceses — os “inovadores sociais” — para a sociedade inglesa. Planos “audaciosos de inovação moderna” (SARGANT, 1858, p.113).
Atualmente, inovação refere-se tão fortemente a uma ideologia econômica baseada na inovação tecnológica (LEITE, 2015, p.41), que esquecemos que este termo foi um conceito de contestação política pelos últimos dois mil anos (GODIN, 2016). O século XX fez da inovação uma ideologia, ou um termo não contestado: a inovação adquiriu uma conotação dominantemente (e quase exclusivamente) positiva. A inovação tornou-se uma prática não controversa, um significante institucionalizado e um princípio ordenante e estruturante do pensamento e da ação. Mas como a inovação deixou de ser temida e indesejada para tornar-se uma necessidade humana, empresarial e governamental nos séculos XX e XXI?
Sabe-se que a des-contestação é um processo de naturalização de conceitos, práticas e representações contidas em ideologias (NORVAL, 2000 e FREEDEN, 1996). Como sistemas de crenças coletivas, as ideologias des-contestam os conceitos políticos ao converter as opiniões em uma certeza monolítica. Nesta naturalização, ideologias apresentam uma organização particular da sociedade, uma articulação não histórica, um imaginário construído e quase sempre infundado. A inovação como ideologia serve a essa função.
Aqueles que fizeram da inovação um conceito contestado no passado — as classes governantes — des-contestaram o mesmo, e fizeram da inovação um instrumento de política pública (GODIN, 2011). Para isto, os governos foram apoiados por teóricos, que em conjunto com os cientistas, trouxeram uma nova visão de inovação — inovação tecnológica — em resposta a um contexto específico — competitividade econômica (SCHUMPETER, 1939; DRUCKER, 1988). A fim de legitimar a inovação para fins políticos, governos precisavam de argumentos ou de marcos conceituais. Aqui os teóricos tiveram sua participação. O trabalho de legitimação foi conduzido com auxílio de cientistas sociais que desenvolveram pensamentos teóricos sobre inovação tecnológica e especializaram as práticas que empresas e governos podem influenciar ou controlar a fim de obter mais da matéria prima, de seus processos ou da invenção tecnológica. Ao atuarem como consultores para governos e organizações internacionais, os cientistas sociais agiram como defensores, simpatizantes, estudiosos e, eles mesmos, beneficiários da inovação, cuja fonte é dita ser o conhecimento (LEITE, 2010).
Como professor do Instituto de Tecnologia de Massachusetts, William Rupert Maclaurin, um neozelandês radicado nos Estados Unidos, produziu um dos primeiros títulos sobre inovação no século XX: Invention and Innovation in the Radio Industry (1949). Maclaurin desenvolveu nesta universidade o primeiro programa sobre inovação em uma tradição schumpeteriana, e estudou os fatores responsáveis pelo que ele chamou (em seus primeiros trabalhos) de mudança tecnológica, bem como o processo de inovação tecnológica, desde a invenção até a comercialização (BACKHOUSE e MASS, 2016). Maclaurin é o verdadeiro responsável pelos estudos sobre inovação tecnológica, e não Schumpeter — este pode ser considerado mais como um teórico sobre as mudanças econômicas. Porém, foi Maclaurin quem produziu a mais influente teoria, o modelo linear de inovação (tecnológica) que serviu de quadro conceitual e de políticas públicas durante décadas (Maclaurin, 1949). Foi ele quem produziu uma definição de inovação como comercialização. As idéias de Maclaurin foram influenciadas por considerações políticas e, por sua vez, influenciaram a política. Em 1944, Maclaurin atuou como secretário do Comitê da Ciência e do Bem-Estar Público dos Estados Unidos da América — Committee on Science and Public Welfare, que juntamente com outros quatro comitês, ajudaram Vannevar Bush na preparação de Science: The Endless Frontier (1945), um dos documentos responsáveis pelo início das discussões do pós-guerra para que o governo estadunidense organizasse políticas para o financiamento da pesquisa como fonte de progresso e competitividade entre as nações:
We have no national policy for science. The Government has only begun to utilize science in the nation’s welfare. There is no body within the Government charged with formulating or executing a national science policy. There are no standing committees of the Congress devoted to this important subject. Science has been in the wings. It should be brought to the center of the stage — for in it lies much of our hope for the future. (Bush, 1945)
Para governos e organizações internacionais, a inovação é a inovação tecnológica e é uma ferramenta política, uma ferramenta a serviço da indústria. O pensamento é essencialmente econômico: competitividade entre indústrias e entre países. Durante as últimas décadas, a inovação como a comercialização de invenções tecnológicas tornou-se a representação dominante da inovação. E com isso, florescem as políticas globais para estimular a inovação tecnológica (LEITE, 2015).
Inovação social como oposto à inovação tecnológica é também recente (Cloutier, 2003; DOWBOR, 2007; ANDRÉ e ABREU, 2006), enquanto, de fato, inovação social surgiu um século antes que a inovação tecnológica. De toda forma, nesses estudos prega-se a inovação social como uma compensação aos males causados pela inovação tecnológica, uma dicotomia de forças opostas. Alguns autores (ANDRE e ABREU, 2006; SOUZA e VALADÃO, 2013; HART et. al, 2015;) definem inovação social como os novos produtos, serviços e modelos que satisfaçam simultaneamente as exigências sociais e que envolvam novas colaborações. Para serem consideradas sob esta definição, as inovações sociais devem ter um meio social e um fim, os potenciais destinatários devem decidir o que deve ser feito e fazê-lo, e devem alterar o local, o regional, o nacional e o global (QUILLEY, HAWRELIAK e KISH, 2016). Porém, sob estas perspectivas, as inovações sociais não podem ser promovidas por empresas comerciais (HART et. al, 2015). Um processo social é usado para um resultado social que catalisa a mudança sistêmica. Uma contrapartida ao conceito de inovação tecnológica que apresenta a tendência da globalização de mercados locais para implantação de uma escala dominante e, com isso, neutralizar as diferenças de cada contexto, o que leva à monocultura dos processos produtivos (GUATTARI e ROLNIK, 1996; BRANDÃO, 2004; SANTOS, 2012; LACERDA e FERRARINI, 2013). Porém, o cenário percebido na esfera econômica é outro: cada vez mais iniciativas coletivas se juntam em laboratórios coletivos de criação de inovações — tecnológicas e sociais — e empreendem economicamente e em busca pelo bem estar social e ambiental, mesmo que como micro e pequenas empresas (SCHIAVO, NOGUEIRA; VERA, 2013).
Nesta dicotomia construída de termos complementares (AYESTARAN, 2011), Emanuel Leite mostra inerente a faceta social da inovação: “a aplicação do conhecimento no desenvolvimento de novos produtos, processos e serviços, ou na melhoria destes, que gere valor social, econômico ou diferencial competitivo.” (LEITE, 2015, p.41). Desta forma, este estudo apóia-se sobre a hipótese de que inovação tecnológica e inovação social não devem ser tratados como conceitos díspares, e procura demonstrar que enquanto exacerbada como produto da invenção tecnológica, a inovação perde seu significado mais potente: o de transformar o meio no qual se insere. Inovação, aqui, diz respeito aos processos de criação de produtos ou métodos, em diversas escalas, que objetivam alterações econômicas e sociais nos contextos em que se inserem, e acredita que essas transformações necessariamente envolvem invenções técnicas. Aqui salienta-se que, no campo das ações, esses conceitos não mais podem ser estudados como díspares, e sim análogos.
A essência social e a essência tecnológica são faces do mesmo fenômeno. Alguns autores buscam segmentar a inovação em tecnológica — aquela que busca o progresso econômico — e em social — aquela voltada às necessidades da sociedade. Esta pesquisa mostra que inovação é, ao mesmo tempo e sempre, social e tecnológica. A evolução dos procedimentos éticos, as mudanças nos padrões de comportamento e de eficiência das pessoas, as alterações para modelos de vida sustentáveis são ações sociais — individuais e coletivas — que configuram aprimoramentos na tecnologia. E essa, por sua vez, molda a sociedade. “Quem faz o filme ou a fotografia não é o cineasta, mas o fabricante da câmara”, diria Flusser (2015, p. 41). Logo, a semiótica é propulsora dos conhecimentos tecnológicos e sociais. A necessidade de contrapor os termos tecnologia e sociedade, para de-contestar a herege inovação, foi política e econômica. Esses conceitos precisam mais uma vez serem trabalhados tendo em vista o cerne de seus significados. Toda inovação, carregada de invenções técnicas, tem o potencial inerente da revolução social.
3 (Des)envolvimento e sustentabilidade
O modelo atual de desenvolvimento formata a ideologia administrativa da produção e alavanca os esforços produtivos numa corrida concorrencial entre nações, grupos e indivíduos para a crescente e contínua acumulação de capital. Destaca-se que Vizeu et al (2012) aponta o desenvolvimento sustentável como conceito que surge em contraposição aos efeitos nocivos do progresso econômico do capitalismo, porém essa postura lhe parece conciliatória da práxis conceitual do formato econômico e político.
A sustentabilidade despertada por Rachel Carson (1962) naquela pouco silenciosa primavera de meados do século XX colaborou para a percepção do que seria a inovação tecnológica orientada à manutenção do planeta. Porém, esse incremento tecnológico percebido nas últimas décadas não diminuiu o ímpeto pelo aumento crescente e contínuo dos investimentos nestes mesmos incrementos por parte dos acionistas das corporações que regem a economia mundial. O que parece é que a melhor inovação das últimas décadas no sistema capitalista para atender a ideologia dos muitos menos assistidos e os desejos econômicos dos mais abastados foi o conceito de desenvolvimento sustentável (VIZEU et al, 2012). Segundo os autores, o desenvolvimento sustentável é um conceito surgido entre os vários debates da ONU que se sustenta na ideia de reparar os efeitos danosos do capitalismo, porém serve às justificativas econômicas na tentativa de conciliar o desenvolvimento econômico com as questões socioambientais. O modo em que o sistema de produção executa a sua essência, ou seja, a acumulação de capital, é uma dicotomia com a ideologia presente nos discursos por desenvolvimento envolvendo o econômico, o social e o ambiente. Assim, o ônus imposto pelo progresso aos sistemas de produção é o de abarcar também o discurso do social e do ambiental, não que isso impeça as nações de moldarem seus pressupostos para focar na lógica da acumulação. No debate sobre os efeitos da inovação no desenvolvimento chamado de sustentável, Vizeu et al(2012) discute o interesse em revelar as contradições das ideologias inseridas no sistema de produção capitalista, na medida em que os pressupostos das racionalidades dominantes articulam-se no contexto social-histórico e induzem o entendimento coletivo para inovações de sociometabolismo dos bens.
Uma questão se mostra predominante para este estudo: até onde a inovação tecnológica participa do modelo de desenvolvimento sustentável em questão? Uma vez que desenvolvimento sustentável pressupõe o ambiental, o econômico e o social (CGDES, 2016), então porque a inovação para o progresso econômico é tecnológica enquanto a compensação das consequências do progresso, com a mitigação das saturações do capital, é tida como inovação social?
O que se assiste é a separação da inovação entre tecnológica — que atende às necessidades dos sistemas por crescente eficiência e como propulsora dos interesses de maiores acumulações e geração de valor — e inovação social — fundamentada como um ônus ao sistema de produção para manter as engrenagens sociais coesas e menos reativas ao avanço das economias sob o argumento socioambiental. De fato, o conceito de inovação é dialético, e sugere modificações diante do discurso socioeconômico em que está inserido. O limiar desta dicotomia está entre a práxis da inovação tecnológica promovida pelo mercado em expansão e a práxis da inovação social rumo ao desenvolvimento sustentável utópico. As forças argumentativas direcionam os discursos da tese e antítese da inovação para o modelo que coaduna às necessidades materialistas dos meios de produção pela racionalidade técnica em oposição velada — ou mesmo conciliatória — com a evolução social e a preservação do ambiente planetário. O conceito de inovação social flui para a instância uníssona da inovação tecnológica na construção de envolvimento sustentável em discordância com o falido modelo de desenvolvimento de outrora.
4 Inovação — instrumento para (r)evolução
Os achados teóricos não fundamentam as práticas se não houver oportunidades de testar as possibilidades: as bases conceituais para inovação social não subsidiam o plausível e exequível se não fossem também condicionadas à prática. Então, envolta na complexidade ideológica-prática, se torna frutífero analisar as transformações econômicas e sociais ocorridas pelo advento da impressão aditiva tridimensional, ou impressão 3D, inovação tecnológica e social na medida que transforma paradigmas dos processos produtivos, de consumo e de transformação social. Destaca-se que sua aplicabilidade se inicia na biomedicina com a microfabricação ou fabricação aditiva desde 1984, e suas aplicações evoluíram da impressão de modelos inorgânicos para a impressão orgânica de tecidos, proteínas e células no campo da medicina regenerativa (BAUER, 2016; WEBSTER, 2013). Mas também em outras áreas biotecnológicas, como na criação de flores reativas similares a plantas carnívoras (TEMIREL, 2016), micro-chips celulares para inserção em seres vivos e o desenvolvimento de micro fluidos biológicos (ATALA e ALMEIDA-PORADA, 2016). Segundo a provedora de inteligência em negócios VISIONGAIN (2016), o mercado da biomedicina prevê lucros esperados para seus acionistas na ordem dos 300 milhões de dólares até 2026. Mesmo sabendo que o alarde em torno das possibilidades do uso da impressão aditiva tridimensional na indústria possa ser exagerado devido às necessidades de aprimoramento da técnica por algumas décadas até assegurar a qualidade e segurança necessária a um material de uso complexo (ROCA et. al., 2017), na indústria aérea, esta tecnologia é utilizada para a construção de modelos de estruturas mais leve para aeronaves (TARA, 2016) e também para o desenvolvimento do “carbono programável auto transformável (…) capaz de fisicamente criar objetos, materiais e estruturas em tempo real” (TIBBITS, 2016, p.8). Uma recente patente de Petr Novikov e Sasa Jokic (2014) torna a impressão aditiva possível para construções de pontes, prédios e automóveis.
No processo de inovação relacionado à impressão aditiva, a RepRap Print pode ser vista como uma iniciativa de inovação social em consonância com inovação tecnológica e econômica. Em relação à sustentabilidade planetária, sabe-se que custos com eletricidade de uma impressora aditiva tridimensional podem ser maiores que os da injeção industrial (MCALISTER e WOOD, 2016), a depender do modelo, tamanho e temperatura de uso da impressora, segundo a Autodesk Sustainability Workshop (2016). Destaca-se também que muitas impressoras 3D de uso caseiro, como a RepRap, dependem de extrusão termoplástica por aquecimento e depósito, e de acordo coma matéria prima utilizada, possui altas taxas de emissão de partículas ultrafinas de poluentes (STEPHENSA, 2013). Ainda assim, são notórias as vantagens econômicas que uma impressora 3D pode trazer para um consórcio de pessoas em determinado local, com sua própria loja comunitária de impressão. Se utilizada em mais de uma residência para produzir mais que 20 objetos de uso doméstico, ou como uma loja de bairro, a impressão aditiva caseira torna-se um atrativo econômico e menos danoso ao planeta quando comparados gastos com transporte, escala de produção e poluição atmosférica relativa à quantidade de itens produzidos (WITTBRODT, 2013). Para além, a RepRap Print tem sua patente aberta, pode ser construída e melhorada por qualquer pessoa com pouco grau de conhecimento técnico, pode imprimir suas próprias peças e pode conter peças reutilizadas de equipamentos eletrônicos descartados (Ibidem, 2013), o que demonstra seu forte apelo social, ambiental e educacional, como afirmam experiências existentes na República Togolesa (ADJOVI, 2016; MATTHEWS, 2016).
Como a RepRap, inúmeras são as empresas que surgem como modelos de inovação tecnológica com foco na sustentabilidade e, por certo, revolucionárias socialmente. Ressalta-se que, além de gerar modelos de negócio e desenvolvimento econômico, inovações conscientes de suas premissas tecnológicas e sociais propiciam a construção de conhecimento coletivo (FONSECA, 2011; SCHIAVO, NOGUEIRA e VERA, 2013; GODIN, 2016) e atendem à necessária inclusão ativa de cidadãos nos processos de inovação econômica, social, ambiental e política (GRIMBLE, 2002; SMITH et. al, 2013). Esta pesquisa pretende um retorno mais que necessário à etimologia do termo e à epistemologia da inovação, para que investimentos e políticas para o setor possam ser conscientemente produzidos no intuito de amplificar as mentes e o espírito humano.
5 Considerações na busca por conclusões
A intenção deste estudo não foi exaurir o debate da inovação, mas despertar o interesse da inovação como prática social e tecnológica per se. Diante do compêndio histórico, o cenário é delineado para apresentar as divergências e as convergências dos conceitos e para analisar processos para a sustentabilidade através da inovação. Ao destacar que inovação, através dos tempos, permeou momentos de significação contraditória, pretendeu-se alcançar a confluência do entendimento das vertentes da inovação social e tecnológica. A neutralidade consensual para alcançar o significado uníssono que descrevesse a essência dos processos de transformação da sociedade foi basilar para a exemplificação de ferramental inovador e transformador como a impressora tridimensional.
Este estudo identifica que as práticas de inovação tecnológica e de inovação social caminham juntas no processo de criação de métodos, produtos e serviços atrelados a ferramentas que se unem na função de alcançar o bem estar social e ambiental, promovidos ou não por governos, academia, empresas e cidadãs comuns. Demonstra também que o processo de transformar a inovação de sinônimo de heresia para um status quo da contemporaneidade foi uma estratégia política construída para a ampliação de investimentos na pesquisa aplicada ao desenvolvimento industrial e econômico das nações durante o período pós-guerras. A separação entre os conceitos de inovação tecnológica e inovação social foi, por sua vez, uma ferramenta linguística para des-contestar o termo inovação, transpor sua heresia revolucionária para a questão social e lá abandoná-la, e saudar os louros do investimento no conhecimento enquanto indústria. O exemplo analisado da impressora tridimensional permite verificar como a inovação atinge a sociedade no seu bem estar social e econômico. Inovação social deve ser analisada de forma inclusiva e não restritiva, como comumente é, sem restringir-se às ações de combate à exclusão social e de preservação do ambiente. Percebe-se aqui necessários estudos que consigam determinar e mensurar processos organizacionais de práticas sustentáveis nas esferas sociais e tecnológicas concomitantemente.
REFERÊNCIAS
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