Relatos de 2004 — Encontro de Conhecimentos Livres Teresina — PI
O I Encontro de Conhecimentos Livres do Nordeste, realizado no Centro
de Referência da Cultura Hip Hop, em Teresina, PI, de 25 de julho a 5
de agosto de 2005, foi a primeira oportunidade real de aglutinação de
pessoas envolvidas com entidades selecionadas pelo programa Pontos de
Cultura, do Ministério da Cultura. Estiveram presentes representantes
de Pontos de Cultura dos estados do Rio de Janeiro, São Paulo, Piauí,
Paraíba, Rio Grande do Norte, Maranhão, Bahia, Ceará, Pernambuco,
Distrito Federal e Minas Gerais, além de boa parte da equipe de
implementação da Cultura Digital — pesquisadores do Instituto de
Pesquisa em Tecnologias da Informação (IPTI), que desenvolvem o
programa em parceria com o MinC, desde meados de 2003.No total, cerca
de 140 pessoas, entre instrutores, organizadores, representantes de
Pontos e comunidade local participaram do evento.
Algumas notas na imprensa — tanto jornais quanto TV e rádio — chamaram
atenção para a oficina que se realizava no Piauí, sempre com destaque
para os diferenciais da oficina. Tanto estas notas jornalísticas
quanto os relatos pós-encontro, demonstram o sucesso das oficinas.
Vale notar que, no primeiro dia oficial de oficina, 25/06, o primeiro
telecentro metareciclado ficou pronto em míseras 1h30. Ao final dos 10
dias de oficinas, os resultados foram mais que positivos: cinco vídeos
de 1 minuto, um CD de áudio com 15 faixas, 1 revista de experimentação
gráfica, cerca de 500 fotos tiradas em oficinas, centenas de matrizes
de xilogravura, além de quatro telecentros, aprendizado e um esporo de
metareciclagem montado no local. Neste texto, buscaremos levantar as
ações que permearam os dias do Encontro, tanto positivas quanto
negativas, e utilizar desta reflexão para traçar novas táticas para
capacitação de pessoas no uso dos kits de produção multimídia, que a
partir de setembro de 2005 começarão a serem distribuídos às primeiras
100 entidades selecionadas a receber os kits dentre os 250 pontos
conveniados.
Primeiramente, e talvez um dos fatores que mais contribuíram para o
sucesso das oficinas, foi a imersão de todos em um ambiente único, de
respeito à diversidade de cada um. Esta imersão começou na noite da
quarta-feira anterior às oficinas, no dia 20 de julho de 2005. Às
23h00, uma comitiva de seis pessoas, entre instrutores e alunos,
partiram do Rio de Janeiro (RJ) com destino a São Paulo (SP). De lá,
outras 15 pessoas somaram-se para a viagem em um ônibus fretado com
espaço para 31 pessoas. Durante a primeira parate da viagem (ou os
1.000 km até Brasília — DF), o circuito interno de TV/DVD/Som do
ônibus foram úteis para a descontração das pessoas presentes na viagem
rodoviária com previsão de 60 horas (66 para os que haviam saído do
Rio de Janeiro). As pessoas presentes no ônibus também chegaram a um
consenso de permitir que na parte posterior do veículo fosse utilizada
para o uso de drogas lícitas por parte das pessoas interessadas em
tais vícios, como cerveja, cigarro e aquele refrigerante preto,
composto a base de coca, cafeína, cola e açúcar (esse refrigerante é
mesmo lícito?). Após um dia e meia noite de viagem, o ônibus entrou no
planalto central, encantando alguns dos viajantes do ônibus que
contemplavam pela primeira vez, na esplanada dos Ministérios, em
Brasília, o cenário branco-ofuscante tão comum nos notíciários
noturnos do canal de TV pertencente ao conglomerado midiático que
controla o oligopólio comunicacional no Brasil. Em Brasília, o resto
das pessoas cadastradas como viajantes nos ônibus embarcaram para mais
duas noites de viagem até Teresina, atravessando o rigoroso cerrado
central do país, um bom pedaço de caatinga de cenários áridos e
semi-áridos, até a chegada ao Piauí, cuja região central do estado
possui uma vasta vegetação que se configura como um misto de floresta
amazônica, cerrado e caatinga. Os dois primeiros dias em Teresina (a
capital nacional do calor) foram um sábado e um domingo, de atividades
livres para representantes dos pontos de cultura, mas foram também de
planejamento para a equipe implementadora, que aproveitou o final de
semana para visitar o espaço onde seriam realizadas as oficinas e
traçar o modelo metodológico que seria utilizado até o final das
mesmas. Vale notar que, durante os dois primeiros dias, mesmo sendo
livres, alguns representantes dos pontos acompanharam a equipe de
implementadores nas visitas aos espaços e nas reuniões de
planejamento, e puderam decidir rumos e escolher táticas como qualquer
outro membro da equipe de implementação. Boa parte dos outros
representantes passaram o final de semana na piscina (durante o final
de semana estivemos em um hotel com piscina) ou visitando alguns
poucos pontos turísticos da capital piauiense. A noite de domingo foi
a última no hotel localizado na região central da cidade. A partir de
segunda-feira, quando começaram as oficinas, todos foram transferidos
para a EMATER, um colégio agrícola estadual localizado nas cercanias
de Teresina, há cerca de 20 minutos em automóvel do centro da cidade.
Depois dos três dias de viagem de ônibus e dois dias de integração com
piscina, cerveja e tambores (graças ao Expresso 411, banda formada no
ponto de cultura Tainã, em Campinas, SP), boa parte das pessoas que
iriam fazer as oficinas já se conheciam, e graças a roda de
apresentação que fizemos no sábado a noite, muitos já sabiam qual era
o foco de trabalho de cada ponto de cultura presente até então.
“Está com dificuldades faz uma plantação que não vai faltar mais chais”
Também importante para o bom andamento das oficinas foi a impecável
apresentação, na segunda-feira pela manhã, de Dalton Martins, que em
poucos porém proveitosos minutos, explicou a todos os presentes a
dinâmica de funcionamento das oficinas e, o mais importante, o papel
que cada um desempenharia nas oficinas: quem ajudasse mais, aprenderia
mais. Ninguém alí presente como instrutor se colocava numa posição de
professor, e sim de facilitador, para auxiliar os participantes a
desenvolverem suas próprias habilidades e pontos-de-vista nas
atividades trabalhadas durante as oficinas. Foram cerca de 10 minutos
de conversa suficientes para explicar a todos que a nossa intenção alí
era bem definida: precisaríamos construir três telecentros com
computadores doados pelo banco público Nossa Caixa, que chegaram ao
local das oficinas algumas dezenas de minutos após a fala de Dalton,
enquanto a primeira oficina (de Break, típica dança do hip hop,
proposta pelo próprio ponto de cultura de Teresina) se desenrolava no
pátio central. Assim que todas as máquinas e boa parte das pessoas
estava no auditório, deu-se início à oficina de MetaReciclagem?, com
Dalton dando uma rápida introdução sobre o estado em que os
computadores seriam encontrados e o que fazer com os mesmos assim que
fossem retirados das caixas, separando peças diferentes em locais
espalhados pelo galpão, bem como o envio dos gabinetes para a oficina
de Pintura, em um verdadeiro processo de reciclagem de material. A
partir daí e pelos próximos 9 dias, uma série de oficinas, previamente
preparadas ou propostas pelos próprios pontos tomaram forma, porém o
conteúdo das mesmas será discutido em breve.
A forma com que as oficinas foram informadas aos participantes também
foi fator positivo para o bom desenvolvimento do Encontro.
Primeiramente, cartazes tamanho A3 pintados a mão com pincel atômico
eram colados na parede exatamente atrás da mesa de inscrição,
facilitando a todos saberem quais oficinas estavam sendo realizadas
pela manhã, quais seriam realizadas à tarde e quais seriam realizadas
no dia subseqüente. Este formato de colocar as oficinas na parede foi
apreciado pelos presentes e, em poucos dias, oficinas propostas por
indivíduos que representavam Pontos de Cultura também se fizeram
presentes, autonomamente, durante a programação As datas e horários
das oficinas eram colocadas sobre os cartazes das oficinas com
post-its (pequenos pedaços de papel com cola sintética em uma das
extremidades, de aproximadamente 1 cm de largura, fabricado, em
especial, pela empresa alemã 3M), o que facilitava, tanto para
organizadores quanto para oficineiros e público, qualquer alteração de
horário ou de sequência programática das oficinas.
Vale notar também que o conteúdo das oficinas se repetia a cada dia,
com pequenas variações, para atender a todas as pessoas que
participavam das mesmas. Portanto, quem fizesse a oficina de
metareciclagem no primeiro dia e quisesse continuar na mesma oficina
no segundo dia, iria continuar aprendendo novas coisas e,
principalmente, ajudando a construir outras coisas. Mas também
permitia que pessoas que fizeram no primeiro dia a oficina de áudio,
no segundo dia fizessem oficinas de metareciclagem, sem alterar o
aprendizado nem em uma oficina e nem em outra. Essa maleabilidade de
oficinas também permitia que as pessoas que estavam há dois dias
fazendo oficina de Tela Preta, por exemplo, pudessem se distrair
durante o almoço com a oficina de percussão ou no final da tarde com
as oficinas livres de xilogravura (oficina livre pois o oficineiro
Thiago Gualberti se fez presente em apenas diferentes momentos,
deixando a incubência de ensinar a outros quem já havia aprendido).
Uma outra ferramenta eficaz para a organização das oficnas e do
cronograma geral de cada dia foi a abertura de uma rádio livre sem
transmissor, a Rádio Ponto-a-Ponto?, que preenchia os espaços entre as
oficinas com música (em especial Dub, Reggae e Rap) e informações
sobre as próximas oficinas ou oficinas em andamento, bem como
informativos sobre controle dos meios de comunicação no país,
desigualdade social, distribuição de renda, pro-ativismo e respeito às
diferenças de cada um. A rádio também foi usada para microfonar as
palestras, que começaram a acontecer, a partir do segundo dia, todas
as manhãs, um acordo feito entre oficineiros e representantes dos
pontos, por todos acharem a manhã um período melhor para receber
informações teóricas, antes de partir para oficinas práticas. Disto
também surgiram bons resultados, com palestras altamente
participativas (algumas, como a conversa sobre Questões de Gênero, se
tornou quase um debate) sugeridas pelos implementadores ou por
representantes dos próprios pontos. O que se percebeu para a próxima
oficina entre os pontos é que a oficina de rádio e web streaming deve
ser uma das primeiras a existirem, possibilitando assim a transmissão
de todo o evento via web.
“Da onde vem a batucada?”
Importante também salientar que uma das oficinas que gerou maior
integração entre todos foi, sem dúvida, a de Pele Digital, comandada
pelos meninos do expresso 411 e que fechou o último dia de oficinas
com uma enorme batucada com a participação de muitos envolvidos nas
oficinas, tocando ganzá, guitarra, bumbo, caixa, tambor, agogô etc.
Além desses fatores apontados, ainda há mais um, que talvez seja o
mais importante deles: o paralelismo ideológico entre o movimento que
originou o Cultura Digital e o Movimento do Hip Hop Organizado
Brasileiro (MHHOB). Para quem não percebeu isso durante os dez dias de
oficina, se fez atento ao discurso final de Gil BV, que salientava a
importância do uso do software livre como ferramenta de resistência à
grandes corporações e seus métodos escravagistas de controle e poder;
que clamava uma melhor distribuição dos meios de produção midiáticas
do país e que salientava a necessidade da busca pela autonomia por
parte dos envolvidos na produção cultural brasileira. Discurso vindo
de um cangaceiro afro-brasileiro do estado mais pobre da união
mostrou-se a melhor conclusão para as oficinas, juntamente com a
mostra dos vídeos, músicas e fotos produzidas durante o Encontro.
“Provoca, provoca, faz de mim um otário”
A partir daqui, tentarei apontar problemas encontrados durante a
realização do Primeiro Encontro de Conhecimentos Livres do Nordeste e
traçar possíveis alternativas, e também deixar os temas em aberto para
reflexão.
Interessante notar o que acabou sendo chamado como “problema de
gênero”. Dos cerca de 140 participantes na oficina, os homens se
fizeram presente em uma quantidade esmagadora, com cerca de 85% do
contingente presente. Isto acabou causando alguns desconfortos, tanto
por parte de homens quanto de mulheres. Em um esforço para descrever
este desconforto subjetivo, nota-se que as mulheres presentes na
oficina estavam constantemente sob um certo assédio dos homens. Na
grande maioria das vezes, não sexual, mas quase ternuroso, carente.
Não era raro ver, durante o almoço, uma garota sentada em um cadeira
com outros oito ou nove garotos à sua volta, vezes paparicando a
fêmea, vezes conversando sob um outro ponto de vista (mais feminino),
vezes apenas olhando para a pessoa, uma forma de “desacostumar o olhar
de tanto homem”. Esta relação acabou gerando alguns incômodos maiores,
como é o caso da música composta durante os dias que dizia “provoca,
provoca, faz de mim um otário…”. Feita em especial para uma das
mulheres presentes no Encontro. A musa inspiradora chegou a irritar-se
em uma mesa de bar quando todos os garotos entoaram os primeiros tons
da melodia: “Pára com isso, eu não provoquei ninguém, vocês é que não
sabem se controlar!”, dizia a moça. Mesmo parecendo um pequeno
incoveniente, o fato aponta para um problema bem maior: o machismo
sexista de boa parte dos homens nas oficinas. Machismo este que foi
duramente questionado e criticado, principalmente pelos envolvidos com
o MHHOB e por alguns coordenadores do Cultura Digital. O problema
machista ainda se fez pungente mais uma vez em um jantar de celebração
entre os bolsistas do IPTI e forças políticas locais, quando um dos
coordenadores do projeto sugeriu à sua companheira de equipe que “as
mulheres deveriam ter nascido sem boca”, frase que causou um
inconveniente geral, em especial às mulheres, por vários dias.
Como uma primeira alternativa para minimizar os efeitos do machismo
coronelista nacional no projeto seria o de: 1. procurar promover
oficinas com um número igual (ou próximo do igual) de particpantes do
sexo masculino e feminino, bem como promover mais oficinas voltadas às
mulheres e oficinas de esclarecimento sobre sexo, sexualidade e corpo
para os homens durante próximas oficinas. Em especial para os
envolvidos diretamente com o Cultura Digital, por se tratar de um
grupo de pessoas que possui, talvez como único mandamento em comum, o
respeito pela diversidade social. E tanto o sexo quanto a opção sexual
fazem parte desta diversidade.
“Eu te falei que eu vinha, estou aqui”
Apontado como um fator problemático por um dos membros da equipe foi a
infraestrutura local, principalmente no que dizia respeito à
alimentação e às acomodações. Tal problema, segundo quem o apontou,
seria solucionado com uma melhor articulação local para garantir uma
boa infraestrutura às equipes particpiantes. Porém, este problema foi
questionado por todos os outros membros da equipe, por considerarem a
situação encontrada no Piauí como a ideal para trabalho. A articulação
local havia conseguido a alimentação, a estadia, o transporte e
materiais de consumo. As críticas lançadas sobre a qualidade da
refeição oferecida e à distância do alojamento em relação ao centro da
cidade foram rebatidas simplesmente com frases do tipo: “isto não é
uma colônia de férias” ou “você precisaria conhecer um pouco mais da
realidade local”. Porém, as críticas foram úteis para melhorar
consideravelmente a qualidade do almoço e jantar oferecidos, antes em
uma quentinha e após as críticas em um bufê, até com opções para
vegetarianos (o que nunca deveria ser esquecido nas oficinas
regionais).
“Deixe os dreadlocks viver em paz!”
Alguns envolvidos nas oficinas sugeriram que o uso de cannabis sativa
e cannabis indica atingiram altos níveis durante as oficinas, talvez
até prejudicando algumas delas, com intromissões aleatórias durante as
aulas que desviavam a atenção de todos por alguns minutos. Neste
ponto, vale dizer que o uso de outras drogas, como o tabaco, cola (em
forma de refrigerante com níveis viciantes de cafeína, cola e coca,
além do açúcar) e álcool também foram em quantidades razoáveis. Talvez
algo de se esperar em um evento de imersão de duas semanas, com
oficinas que começavam as 9h00 da manhã e se estendiam até as 20h00 ou
mais. No ponto de vista do autor deste texto, o uso de todas as
substâncias alteradoras de estados físicos ou mentais por parte de
toda equipe se deu em quantidades razoáveis, sem alterar o
funcionamento geral das oficinas.
“Eu quero um guaraná da Amazônia”
Foi notado, tanto pela equipe de implementação quanto pelos
integrantes de Pontos de Cultura e da comunidade que dez dias seguidos
de oficinas se mostrarm muitos. Embora todos os envolvidos com o
encontro mantiveram as atividades acontecendo até o último segundo do
Encontro, era possível notar, no penúltimo e, principalmente, no
último dia de festival, uma alta estafa física das pessoas, que
realizavam suas atividades de forma mais lenta, ou que acabaram
tomando o último dia para ficarem no pátio conversando e ouvindo a
rádio, se preparando para a festa de encerramento.
“Eu não vou na sua casa, pra você não vir na minha”
Um fato pontual é apontado neste relatório como observação. Trata-se
da ausência de um dos membros da equipe de implementação do nordeste
(região hospedeira do Encontro), que se retirou das oficinas no começo
do primeiro dia e só voltou a dar notícias depois de ter sido
contactado por telefone, cerca de 30 horas após ter deixado as
oficinas. Por motivo de uma crise alérgica, o implementador
supracitado passou duas noites em um dos melhores hotéis da cidade, e
voltou para casa no terceiro dia de oficina, de avião. Esta atitude
gerou um certo desconforto entre todos os da equipe, coordenadores ou
não, por se sentirem também merecedores de estadas em bons hotéis e
tickets de avião para voltar para casa. O assunto começou a ser
conversado com o tuxaua responsável pelo implementador, que defendia o
ponto de vista do jovem, porém nunca antes havia percebido o ponto de
vista de outras 139 pessoas.