Resenha: A dialética do subdesenvolvimento: entre a nacionalização e o localismo

BRANDÃO, Carlos Antonio. A dimensão espacial do subdesenvolvimento: uma agenda para os estudos urbanos e regionais. Campinas: UNICAMP, 2004. 200 p.

Ricardo Ruiz
10 min readOct 8, 2017

Carlos Brandão é professor do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional da UFRJ (IPPUR/UFRJ). Doutor, Livre Docente e Professor Titular pelo Instituto de Economia da Unicamp é também Pós-doutor pelo Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra. Bolsista do CNPq. Pesquisador da temática do Desenvolvimento e Planejamento Regional. Coordenador do site Intérpretes do Brasil, Coordena o Observatório Celso Furtado para o Desenvolvimento Regional. É, sem dúvida, um dos grandes pesquisadores do desenvolvimento — e do subdesenvolvimento — nas questões territoriais e urbanas.

A dimensão espacial do subdesenvolvimento: uma agenda para os estudos urbanos e regionais é composta por cinco capítulos, contudo, a presente resenha tem seu foco direcionado a uma análise crítica do primeiro capítulo desse documento elaborado como Tese de Doutorado de Carlos Brandão. Escrita como ensaio em 2004, a obra oferece uma importante contribuição para a construção de políticas públicas desenvolvimentistas focadas no caráter regional e a reflexão sobre as mesmas. Nele, o autor busca analisar a economia política do desenvolvimento a partir do embate com os “localismos” na literatura e nas políticas públicas contemporâneas, e divide o texto em três tópicos: a) uma introdução ao tema, onde o autor busca apresentar como a globalização hegemônica e a internacionalização capitalista e tecnocrata “debilita os centros nacionais de decisão e comando sobre os destinos de qualquer espaço nacional”; b) uma apresentação sobre mitos, banalizações e paradoxos existentes nas teorias contemporâneas sobre o desenvolvimento e, c) onde o autor apresenta os desafios para uma análise sobre a repercussão no espaço do desenvolvimento capitalista dado às transformações recentes do mesmo.

Na primeira parte do texto, o autor apresenta um panorama atual dos fluxos financeiros, econômicos e tecnológicos num período de intensa internacionalização do capital, e como esses fluxos internacionais sabotam centros de decisão e planejamento dos territórios nacionais, principalmente os países do terceiro mundo e continentais como o Brasil, o que salienta as marcas do subdesenvolvimento: uma sociedade desigual, excludente e segregadora. Ademais, o autor apresenta uma literatura sobre o desenvolvimento que comemora o “fim das escalas intermediárias entre o local e o global.” Para ele, o processo de globalização do capital até as localidades revaloriza territórios por um lado, mas por outro, os discursos e as políticas públicas tendem a banalização das teorias para “ o lugar-comum do voluntarismo, cristalizando um grande consenso, um verdadeiro pensamento único localista”. Para o autor, muito mais que o desaparecimento das escalas intermediárias entre o local e o global, está o novo sentido que essas escalas adquirem na contemporaneidade. Dessa forma, seria possível discutir os espaços e territórios onde ocorrem os problemas e desenvolver políticas públicas que considerem as diferentes escalas, mas dentro de um projeto nacional de desenvolvimento. E afirma, categoricamente, que “Nenhuma escala per se é boa ou ruim.” Ao se defrontar com a “nova teoria do crescimento endógeno”, elaboradas a partir de Romer (1986) e Lucas (1988) e Solow (1956), o autor nota que esse discurso que prega a endogeneização do progresso técnico e apontam o papel dos investimentos em P&D e em capital humano, como forma de ação nas especificidades. Mas aponta que Krugman (1996) levanta a hipótese de que os “retornos sociais dos investimentos são maiores do que os retornos privados, por causa das economias externas”. E ao criticar as teorias da economia regional, ressalta que elas não apresentam os mecanismos dinâmicos do auto-reforço endógeno, formado pelas externalidades. Adiante, o autor salienta que essa “nova teoria” admitem a intervenção do Estado apenas para contrabalançar as posições resultantes das “falhas de mercado”, e para promover ambientes favoráveis aos investimentos privados, como isenções fiscais ou outras despesas públicas “produtivas”. Para finalizar a introdução, o autor apresenta um quadro com dezenas de pensadores dessa nova teoria das localidades, e aponta nesse quadro as espinhas dorsais de cada um dos pensamentos, para entender quais os pontos em comum dessa nova teoria.

Na segunda parte do capítulo, o autor busca compreender os paradoxos e as contradições desse pensamento focado na “endogenia exagerada” e inicia na constatação de que os textos creem “piamente na capacidade das vontades e iniciativas dos atores de uma comunidade empreendedora e solidária, que tem controle sobre o seu destino, e procura promover sua governança virtuosa lugareira”. Para o autor, as classes sociais, os oligopólios e a hegemonia aparecem nessas teorias como como “parte de um passado totalmente superado.” Para as novas teorias do desenvolvimento, pessoas “especiais” e diferentes, capazes de apresentar a melhor competitividade, maior eficiência etc teriam a garantia de sua “inserção na modernidade”. Segundo o autor, esse pensamento tem consequências preocupantes a longo prazo na balança fiscal, além de pasteurizar o debate sobre as verdadeiras questões estruturais do desenvolvimento, e que acabam por “subestimar os enormes limites colocados à regulação local.” O autor ainda apresenta uma tabela informativa sobre os conceitos e palavras chaves mais presentes nessas teorias e seus correlatos inversamente proporcionais numa análise clássica dos processos de desenvolvimento. Assustadoramente, cada termo da nova teoria é uma contraposição à alguma palavra-chave estabelecida nas análises clássicas: que levam em conta a luta de classes, as hegemonias, os oligopólios e outros fatores da economia globalizada. E apresenta, nos parágrafos seguintes, o “enorme paradoxo subjacente à maioria dessas formulações teóricas”. Nelas, o autor afirma, “ou bem o espaço local é um mero nó entrelaçado em uma imensa rede (um quase anônimo ponto a mais, submisso em um conjunto gigantesco, funcional à determinação instrumental de uma totalidade onipresente); ou bem o espaço local aparece como um recorte singular, dotado de vantagens idiossincráticas e únicas, capaz de autopropulsão, identidade e autonomia. (…) Ora há estrutura sem sujeito, ora sujeito sem estrutura.”

Ao ressaltar as contradições dessas novas teorias, o autor nota recorrente nesses estudos “o papel das aglomerações e das proximidades”, nas análises sobre como os territórios produtivos propiciam uma “densidade social cooperativa específica” — ou uma vitalidade. Normalmente, esses territórios produtivos são construídos através de incentivos por parte do Estado e neles se situam grandes empresas industriais — que não são levadas a campo nesse estudo das proximidades produtivas. Para além, aponta que “as abordagens da moda têm abandonado a perspectiva crítica da sociedade, retornando ao conceito de comunidade, constituída por atores e agentes, e não classes sociais, que orientariam suas ações pelo compartilhamento dos valores da auto-identidade e do pertencimento a comunas, mais do que por interesses de classe”, o que dissolveria os sistemas sociais em prol de uma “identidade construída em torno da consciência de personalidade distintiva, própria de determinada comunidade” — estorvo nos estudos das relações de classe e dos sistemas de produção. Aliás, o autor nota que algumas teorias chegam a afirmar que “não há, nesta nova fase do capitalismo, (…) necessidades de se ter a propriedade dos meios de produção. As mudanças tecnológicas e organizacionais teriam possibilitado tal poder de governança entre empreendedores e agentes inovativos, que logram dar coerência a iniciativas que estão no ar”. E, como outro paradoxo, as novas teorias mostram que “aos trabalhadores, restaria ou se tornarem (…) donos de seu próprio negócio, ou buscarem qualificação para melhorar sua empregabilidade.” Ainda nas controvérsias dessas teorias, o autor nota que esses estudos salientam também o papel dos recursos tangíveis (suporte infraestrutural, crédito), mas se focam nos intangíveis, “que asseguram o ambiente virtuoso de cooperação”. Nessas teorias, mesmo com as necessidades de fomento fiscal e disponibilização da infraestrutura, o papel do Estado seria pouco nesse contexto de “aprendizagem coletiva” e “atmosfera sociopolítica”, e possui apenas a obrigação de “desregular” os mercados e promover parcerias com o setor privado. O autor então, salienta que “câmbio, juros, fisco, relação salarial, questões monetárias, financeiras, etc. parecem ser questões fora do lugar”. Neste ponto, salienta que “programas estabelecidos por grandes unidades (…) não podem realizar-se simultaneamente, e acima deles tem de intervir uma arbitragem”. Enquanto as novas teorias apontam para uma acumulação flexível, as mesmas não analisam os problemas da acumulação dos oligopólios, principalmente nas economias “semi-industrializadas”. Para o autor, esses trabalhos falham pois “negligenciam que há hierarquias inter-regionais” onde o comando dos processos se encontram fora do território sob análise.

Nessas teorias, a ação pública tem o papel de subsidiar custos de implantação e operação de grandes empreendimentos. A busca pública em estabelecer as melhores ofertas tributárias, de terras, infra-estruturas, etc., faz com que o benfeitorado (a grande empresa) seja o determinante e o vitorioso dessa “guerra entre lugares”. E, por fim, salienta a “contraditória posição oportunista” presente nessas teorias:

(…)disputas que se travam entre vários ofertantes de plataforma locacional, geralmente (…) deseja atrair grandes plantas industriais, em uma paradoxal nostalgia com parques oligopólicos/industriais, dotados de potentes relações inter-industriais (…) que atrairiam diversificadas empresas fornecedoras, gerariam enorme número de empregos diretos e indiretos (…), mais próximo aos complexos territoriais manufatureiros que, segundo eles, seriam próprios de uma etapa fordista totalmente ultrapassada.

O autor afirma que a crença existente de que a indústria terciária pode ser facilmente replicável, principalmente em vontade da iniciativa privada local, é falha. É como se esta fase do capitalismo esvaziasse o poder e a propriedade através das eficiências coletivas e solidárias de um determinado local. Para o autor, esse debate das novas teorias do desenvolvimento negligenciam “a questão fundamental da hegemonia e do poder politico” e encobrem o fato de que “existe uma coesão orgânica extralocalizada, que não é abalada pelas iniciativas empreendedoras ou pela atmosfera de progresso” e que não dispõe do “tratamento adequado das heterogeneidades estruturais dos países subdesenvolvidos”. Ao afirmar que as assimetrias nesses países correm riscos de sofrer rupturas, mesmo federativas, salienta a necessidade de uma repactuação federativa para a “construção de um patamar mínimo de homogeneidade social”, como pré-requisitos à um processo de desenvolvimento nacional. E questiona a capacidade de centros de controle e de decisão internos à localidade, apoiados apenas pela própria dinâmica endógena. Defende, por fim, a construção de novas escalas nas quais se possa entender aonde se encontram atualmente as divisões sociais do trabalho, pois sem os determinantes maiores da lógica de acumulação do capital, não se poderia entender o seu aperfeiçoamento e nem de seus instrumentos de ação, que atualmente mobilizam “a diversidade social e material em seu favor, ou seja, em benefício da valorização autômata e compulsiva.” E dessa forma, apoiado pelas teorias das localidades e seus mitos, “engendra processos trans escalares, o tempo todo, em cada um de seus movimentos”.

Por fim, na terceira parte do texto, atento às profundas transformações ocorridas no capital na atualidade — vínculos e interdependências comerciais entre fronteiras, a redefinição da produção regional e local e a homogenização das heterogeneidades espaciais, o que cria novas hierarquias, fluxos, classes e redes de poder — o autor nos apresenta seu questionamento para servir de base para a análise das teorias do localismo: “a atual onda de mundialização do capital subverteu e/ou aprimorou o uso que o capitalismo sempre fez das escalas espaciais?” e “Que papel desempenham, nesse novo contexto, o local, a região, o espaço nacional?” Defende então que, na natureza das hierarquias de geração e apropriação de riquezas o “sistema capitalista aperfeiçoou seus instrumentos, inclusive o manejo mais ágil das escalas e a capacidade de utilização do espaço construído”.

Desta forma, cada vez mais, o capital busca infiltrar-se nas localidades, no local, nas bases identitárias das sociedades, no apoio a atitudes de voluntarismo, de startups, de microempresários e toda uma sorte de termos condizentes com um termo maior, o empreendedorismo — ou como diria Marilena Chauí (2013), no impossível ato de todos sermos vencedores perante o capital — na crença do desenvolvimento do todo a partir das pequenas partes.

Essas novas teorias, para o autor, se comportam paradoxalmente e, assim como Harvey (1989), resume: “Quanto menos importantes as barreiras espaciais, tanto maior a sensibilidade do capital às variações do lugar dentro do espaço e tanto maior o incentivo para que os lugares se diferenciem de maneiras atrativas ao capital”. A partir disso, o autor nos mostra como, mesmo nessas localidades, o capital se processa, no espaço urbano, como mutação parcial, irregular e — principalmente — “altamente discriminatória”. E a partir daí, o que se busca são espaços que ofereçam cada vez mais capacidade de apropriação privada e de possibilidades de rendimentos, e cristalizam-se nos espaços locais as mesmas discriminações do global. O capital aumenta sua mobilidade e flexibilidade, na difusão entre redes interconectadas. Mas também, a natureza desigual da acumulação molda esses novos espaços: o capital produz o meio e a mensagem.

Para o autor, a visão liberal-conservadora, representada por Ohmae (1996), onde essas células locais se tornam cada vez mais autônomas dos Estados e esses, por sua vez, assumem um caráter de gerência de territórios regionais, amplia cada vez mais o poder de veto através de articulação de grupos marcados territorialmente, com propagações de ondas de separatismo, onde a elite local articula discursos “em prol dos interesses legítimos da região”, num esforço de negação política, o que amplia o espaço privado e comprime o espaço público. E, na crença na falta de utilidade de qualquer regulação externa ao mercado, essas teorias neoliberais localistas se baseiam em falsas provérbios de um paradoxo venenoso para a corrosão das bases do Estado, e fomenta qualquer tipo de localismo.

Importante notar que o ensaio foi produzido em um momento político e econômico em que as metas de globalização neoliberais de Fernando Henrique Cardoso operavam na transformação de um estado — e de uma identidade — brasileiro em quintal de grandes investimentos internacionais, principalmente de origem estadunidense, como afirma Brito (2002). E, é possível perceber, durante os anos da era Lula, um formato de estabelecimento de políticas públicas em conformidade com os caminhos apontados pelo autor, em um misto de desenvolvimento local e nacional, guiado por investimentos internacionais, em uma combinação esquizofrênica da esquerda do bem-estar individual, capaz de produzir de Belo Monte à políticas de economia solidária, amalgamado no espesso caldo do Pré-sal.

É um texto denso, com ampla análise teórica sobre economia, desenvolvimento e sociedade contemporânea, mas obra indispensável para gestores públicos de qualquer natureza, bem como para os amantes da dialética político econômica do subdesenvolvimento.

Referências

BRITO, F. Empreendedorismo: a revolução do novo Brasil. Revista de Economia & Relações Internacionais, São Paulo, n. 2, 200./ago. 2002. Disponível em: http://www.faap.br/revista_faap/rel_internacionais/empreendedorismo.htm. Acesso em: 28 ago. 2016.

POMBAZUCA NEWS: VOICES FOR FREEDOM AND JUSTICE. Entrevista com a filósofa brasileira Marilena Chauí: “não existe nova classe média”. Disponível em: <http://www.pambazuka.org/pt/security-icts/entrevista-com-fil%c3%b3sofa-brasileira-marilena-chau%c3%ad-n%c3%a3o-existe-nova-classe-m%c3%a9dia>. Acesso em: 29 ago. 2016.

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