Uma lenda de duas cidades

Ricardo Ruiz
10 min readOct 8, 2017

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Sean Dodson

Tradução de Ricardo Ruiz

Foram tempos bons e ruins. Há uma década, o escritor de ficção científica David Brin publicou a Sociedade Transparente 1. Uma lenda sobre duas cidades, que se passa 20 anos no futuro. Brin teve uma visão, ou melhor: duas. Ele previu a chegada onipresente de uma “sociedade monitorada”, e postulou duas questões muito polarizadas. Brin decidiu apresentar ao leitor uma escolha dentre duas: Qual caminho você quer seguir?

Brin falou de duas cidades, vinte anos à frente. De longe as duas cidades pareciam muito iguais. Ambas, segundo ele, conteriam “estonteantes maravilhas tecnológicas”, ambas “sofreriam dilemas urbanos conhecidos de frustração e decadência”. As duas seriam exaustivamente modernas; ambas sofriam uma decadência urbana. Podiam ser Rotterdam ou Vancouver; Taipei ou Istambul. A localização exata não importava. O que importava era que os visitantes dessas cidades futuras notariam algo cruamente semelhante entre as duas: os crimes de rua seriam notáveis pela ausência. Foram completamente devastados. Porque, olhando para baixo a partir de “cada poste, nas coberturas e semáforos de rua”, pequenas câmeras que “giravam à esquerda e à direita” estariam sentinelas sobre os futuros habitantes de ambas as nossas cidades, “examinando o tráfego e os pedestres, observando tudo com uma visão plena”.

Mas aí acabavam as semelhanças. A Cidade Número Um — A Cidade do Controle — era uma cidade saída de nossos piores pesadelos, rasgadas das páginas mais sombrias de 1984 de Orwell ou We de Zamyatin. É um lugar onde “uma infinidade de câmeras relatam suas cenas urbanas direto para a Central de Polícia, onde os agentes de segurança utilizam sofisticados processadores de imagem para buscar por infrações contra a ordem pública — ou talvez contra um pensamento estabelecido”. Nesta cidade de vidro, Brin alertou, os cidadãos andam pelas ruas conscientes de que “qualquer palavra ou ação poderia ser observada por agentes de um misterioso bureau”.

Mas Brin também pintou outra cidade. Esta cidade seria tão transparente como o vidro; aqui também haviam câmeras, “empoleiradas em todos os pontos que a vista alcança”, mas uma sutil diferença liberta estes cidadãos da Cidade de Controle supracitada. Aqui as sentinelas silenciosas não transmitem direto para a polícia secreta, ao contrário, “todos os cidadãos desta metrópole podem levantar o seu relógio de pulso/TV e ver as imagens de qualquer câmera na cidade. Nela, um carrinho de bebê circula pela noite enquanto sua babá certifica-se que ninguém se esconde na próxima esquina. Não muito longe, um jovem atrasado disca para ver se as pessoas ainda esperam por ele na fonte em frente à prefeitura da cidade. A um quarteirão dali, um pai ansioso examina a área e encontra o caminho pelo qual seu filho se afastou. Ao longo do shopping, um ladrão adolescente é levado cautelosamente sob custódia, com atenção minuciosa aos direitos, porque o policial que o prendeu sabe que todo o processo está sendo examinado por um número incontável de pessoas que assistem atentamente, para evitar um lapso de profissionalismo”.

Mas essa não é a única diferença na lenda das duas cidades de Brin. A privacidade também seria melhor mantida e pensada. Micro-câmeras (como câmeras de telefones), tão amadas por nossos cidadãos em locais públicos, são banidas de muitos lugares privados (mas não dentro da sede da polícia). Esta é uma cidade construída mais na confiança do que o controle.

As futuras cidades de Brin eram muito diferentes; a beleza de sua obra é que ele apresentou um par de contrastantes modos de vida que representam “relações completamente opostas entre cidadãos e seus responsáveis ​​civis”.

Uma década depois da visão de Brin, qual cidade você acha que o mundo escolheu? A cidade do controle ou a cidade de confiança? A resposta, provavelmente, é um pouco de cada. Ambas as visões de Brin entraram no tecido das nossas vidas diárias em uma década onde CCTV (circuito fechado de televisão) e telefones-câmeras se tornaram itens comuns: onde cada qual se tornou mais prevalente em diferentes cidades de todo o mundo. De fato, ambas visões do futuro são condenados ao fracasso, como todos esses tipos de visões são. Como todas as obras proféticas, elas nos dizem mais sobre a época em que foram escritas do que o tempo que tentam prever. O mundo, como sempre, segue em frente e até mesmo o profeta mais perceptivo não pode ver o que está no virar da esquina.

Mas como seria a visão de Brin para hoje, para 2008: ao pintarmos nossas visões da cidade de controle e da cidade de confiança? O que vemos? Em nosso ponto de vista das cidades daqui a 20 anos, vemos duas cidades que de longe se parecem muito. Ambas são completamente modernas, ambas sofrem a degradação urbana, ambas são transparentes como se fossem feitas de quartzo. Mas a coisa que tão perturbou Brin a uma década — a onipresença de câmeras — já não é mais a tecnologia que define as nossas cidades. De fato, a um maior ou menor número, essas câmeras poderiam parecer irrelevantes para uma série de tenconologias mais sofisticadas e desenvolvidas atualmente.

Em nossas futuras cidades — 20 anos à frente — tecnologias muito mais sutis estão todas em seu devido lugar. Ao invés de um ninho de uma infinidade de câmeras no topo de cada poste, reside uma quase invisível rede de freqüências sem fio, onde praticamente qualquer objeto e espaço podem ser localizados e monitorados, encontrados e registrados tão facilmente como um item no eBay ou o preço de um vôo na easyJet.

Nossas duas cidades estão atadas como uma “internet das coisas”. São lugares onde a infra-estrutura urbana é incorporada com uma sofisticada rede de itens rastreáveis​​. Elas são lugares onde aos bens de consumo são atribuídos endereços IP, assim como páginas da web. E como a Sociedade Transparente de Brin, nossas futuras cidades de vidro podem seguir dois caminhos.

Então, pergunte a si mesmo, qual caminho você gostaria? Vamos considerar a Cidade da Controle: É um lugar onde a implantação de etiquetas de identificação por radiofreqüência (RFID) tornaram-se não apenas comuns, mas onipresentes. Objetos, espaços e, sim, até mesmo as pessoas estão marcadas e com um número único, tal como endereços da web. As noções de público e privado começaram a dissolver; ou são irrelevantes; noções de propriedade estão sendo rapidamente repensadas. A segurança é a questão crucial para aqueles que podem pagar, mas também para aqueles que não podem. Muito em breve, o acesso a partes da cidade estará esculpido: permitindo a entrada de ricos e poderosos onde quiserem e os pobres com acesso para onde forem permitidos.

Cada item que você compra no supermercado na Cidade Número Um — a Cidade do Controle — está monitorado e potencialmente seus dados estão sendo minados para que não haja uma combinação de bens em sua cesta que as autoridades não gostem. Seus movimentos são observados, e não pelo uso de imagens brutas de câmeras (que provaram ser bastante ineficientes no combate ao crime), mas por etiquetas embutidas em seus gadgets ou roupas e até mesmo sob a pele. Transmissíveis sem fio e instantâneas, se conectam com sistemas de satélites que registram suas pegadas digitais infinitamente. Cada coisa que você compra, cada pessoa que conhece, a cada movimento que você faz. Eles podem estar observando você. A Cidade Número Dois — a Cidade da Confiança — à primeira vista se parece muito com a Cidade do Controle. Mas aqui, aos cidadãos foi dado muito mais controle: Aqui pervasivos sistemas foram incorporados, mas oferecidos como uma opção e não como um padrão. Você esquece seu laptop no trem, e não há problema: com a “Internet das Coisas” é possível localizá-lo em um motor de busca, até mesmo providenciar para que possa ser entregue de volta à sua casa. Da mesma forma, assim como nas cidades do futuro de Brin, câmeras ficaram na estação policial, na nossa cidade da Confiança os movimentos dos nossos Guardiões são rastreados para que os cidadãos sejam livres para desligar as suas câmeras do lado de fora.

Quando Brin fez a previsão de suas duas cidades, ele fez uma série de pressupostos que até agora provaram-se falsos. Em ambas as cidades, ele pensou que a prevalência de câmeras causaria o fim da criminalidade nas rua e desapareceria. Isso não aconteceu. Mas suas previsões sobre a quantidade extras de câmeras, tanto para a vigilância como para uso privado, foram incrivelmente prescientes. Hoje nós estamos em um limiar semelhante; à beira da chamada “internet das coisas”. A implantação do RFID é apenas uma forma de computação ubíqua, um termo cunhado pelo falecido Mark Weiser em 1988, durante seu mandato como tecnólogo-chefe da Xerox Palo Alto Research Centre (Parc), que prevê uma maior implantação de tecnologia da informação em nosso cotidiano. Para Weiser, o futuro da tecnologia da informação era como um utilitário, algo que existiria enquanto infraestrutura, como gás e eletricidade. 2

A diferença entre a visão de visões de Brin e a nossa é a visibilidade das ferramentas de vigilância do nosso futuro. A computação ubíqua (muitas vezes referida como ubicomp) descreve um conjunto de processos em que a tecnologia da informação tem sido completamente integradas em objetos e atividades cotidianas: a tal ponto que o usuário muitas vezes é alheio a interferir.

Como Naomi Klein assinalou recentemente, os planos para a Cidade do Controle já foram encenados. Klein nos aponta para3 Shenzhen, uma das megacidades emergentes da China. Trinta anos atrás, Shenzhen não existia. Era apenas “uma série de pequenas aldeias de pescadores a cultivar coletivamente arrozais, um lugar de estradas de terra esburacadas e templos tradicionais “. Mas Shenzhen, graças à sua proximidade com Hong Kong, foi escolhida como o local para Primeira “zona econômica especial” da China, uma das únicas quatro áreas onde o capitalismo seria permitido em caráter experimental. “O resultado foi uma cidade de comércio puro, não diluído pela história ou cultura enraizada — a pedra de cocaína do capitalismo”.

Era uma força tão viciante para os investidores que Shenzhen experimentou rápida expansão, engolindo não apenas o Delta do Rio das Pérolas ao redor, que agora abriga cerca de 100.000 fábricas, mas “a maior parte do resto do país.” Hoje, Shenzhen é uma cidade de 12,4 milhões de pessoas, em uma enorme expansão industrial, cheia de fábricas que fazem tudo, desde iPods a laptops, de tênis a carros: “Há um metrô super leve ainda em fase de construção — que em breve irá conectar tudo em alta velocidade; cada carro possui várias telas de TV conectadas através de uma rede Wi-Fi gratuita. À noite, toda a cidade se ilumina como um Hummer conservado, com cada hotel cinco estrelas e torre de escritórios competindo para apresentar o melhor show de luzes”.

Mas Klein notou algo mais sobre Shenzhen. Ela diz que é “mais uma vez servindo como um laboratório, um campo de testes para a próxima fase deste vasto experimento social”. Trata-se de uma vasta rede de cerca de 200 mil câmeras de vigilância instaladas ao longo da cidade. A maioria são em espaços públicos, disfarçados de postes de iluminação. Logo o circuito fechado de câmeras de TV será conectadas a uma “rede nacional única, um sistema que tudo vê que será capaz de rastrear e identificar qualquer pessoa dentro de seu alcance… ao longo dos próximos três anos, os executivos de segurança chinesas prevêem que irão instalar até dois milhão de CCTV em Shenzhen, o que a tornaria a cidade com maior audiência no mundo”. É praticamente a visão de Brin há uma década.

O olho que tudo vê chinês é apenas uma parte de uma experiência muito mais ampla em vigilância. A China também está desenvolvendo um projeto chamado “Escudo Dourado”.

“O objetivo final é utilizar a mais recente tecnologia de rastreamento de pessoas — cuidadosamente fornecido por gigantes da tecnologia americana como IBM, Honeywell e General Electric — para criar um hermético casulo ao consumidor: um lugar onde os cartões Visa, tênis Adidas, celulares, McLanche Feliz, cerveja Tsingtao e entrega UPS… possa ser desfrutado sob o olho aberto do Estado, sem a ameaça da democracia romper tudo. Com a agitação política em ascensão em toda a China, o governo espera usar o escudo de vigilância para identificar e neutralizar a dissidência antes que ela surja como um movimento de massas como a que chamou a atenção do mundo na Praça da Paz Celestial”.

O ponto é que as tecnologias que conduzem A Cidade do Controle não precisam estar restritas à China. Esta integração de câmeras de TV com a internet, telefones celulares, softwares de reconhecimento facial e de monitoramento GPS que está sendo testado com o “Escudo Dourado” deve ser estendido por toda a China e além. Sistemas que controlam nossos movimentos através de cartões de identidade nacionais com chips de computador RFID contendo informações biométricas estão sendo ordenados ao redor do mundo. Como nossos sistemas operacionais que carregam nossas imagens a bases de dados policiais e ligadas à registros de dados pessoais. Conforme Klein aponta, “o elemento mais importante de tudo: a conexão de todas essas ferramentas em conjunto em um enorme banco de dados pesquisável de nomes, fotos, informações residenciais, histórico de trabalho e dados biométricos. Quando o Escudo Dourado estiver concluído, haverá uma foto nessas bases de dados de todas as pessoas na China: 1,3 mil milhões de rostos”.

Já as mesmas corporações ocidentais que ajudaram a China a construir sua “Golden Shield” estão pressionando os governos ocidentais para construir sistemas similares. Os EUA já tem planos para construir a “Operação Escudo Noble”, enquanto os projetos para cidades similares aos de Shenzhen estão sendo introduzidos em Nova York, Chicago e Washington DC. Londres tem muito mais câmeras de vigilância do que Shenzhen. Nas páginas abaixoNT, Rob van Kranenburg irá delinear sua visão do futuro. Ele dirá de seus primeiros encontros com tecnologias baseadas em localização que tarnarão-se comuns e o que isso pode significar para todos nós. Ele irá explorar o surgimento da “internet das coisas”, traçando-nos através de suas mundanas origens, back-end, e o mundo da cadeia de abastecimento internacional para aplicações domésticas que já existem em um estágio embrionário. Ele também irá explicar como a adoção de tecnologias do controle da cidade não é inevitável, nem algo que devemos aceitar cegamente como sonâmbulos. No relato de van Kranenburg sobre a criação da rede internacional de Bricolabs, ele também sugere como cada um de nós pode ajudar na construção de tecnologias de confiança e nos fortalecer na era da vigilância de massa e tecnologias ambientais.

Assim como Brin argumentou na Sociedade Transparente, que um maior bem comum pode ser estabelecido se a vigilância é igual para todos, e que o público tenha o mesmo acesso que as pessoas no poder, defendemos que seria bom para a sociedade se a arquitetura da “internet das coisas” fosse igual para todos, e que o público tenha as mesmas ferramentas dos que estão no poder.

1 | David Brin, The Transparent Society: Will Technology Force Us to Choose Between Privacy and Freedom?, Cambridge, MA: Perseus Books, 1998.

2 | Mark Weiser, ‘The Computer for the Twenty-First Century’, Scientific American (September 1991), p. 94–10. http://www.ubiq.com/hypertext/weiser/SciAmDraft3.html

3 | Naomi Klein, ‘China’s All-Seeing Eye’, Rolling Stone 1053 (May 2008). http://www.rollingstone.com/politics/story/20797485/chinas_allseeing_eye

4 | Greg Walton, China’s Golden Shield: Corporations and the Development of Surveillance Technology in the People’s Republic of China, Montréal (Québec): Rights & Democracy, 2001.

NT | Este texto é a introdução do livro The Internet of Things — A critique of ambient technology and the all-seeing network of RFID de Rob van Kranenburg disponível em http://www.networkcultures.org/_uploads/notebook2_theinternetofthings.pdf

Tradução de Ricardo Ruiz

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